A roleta e a distância
Enquanto voltava de ônibus para casa hoje, no fim da manhã, me ocorreu uma constatação simples que exemplifica bem o quanto o mundo se esforça para cada vez mais afastar as pessoas umas das outras. Nada muito extraordinário ocorreu, na verdade: simplesmente um senhor, lá perto dos seus 50 anos, encaminhou-se para descer do ônibus e, assim que a porta abriu, soltou um não muito alto mas ainda assim nítido 'obrigado' antes de sair do coletivo e se aventurar na vida lá fora. Eu estava sentado bem perto da porta, e me peguei totalmente admirado diante desse simples e singelo gesto de civilidade. Estranhei a mim mesmo - afinal, ele só agradeceu, o que há de mais nisso? Daí, comecei a pensar nas roletas dos ônibus, e acabei percebendo o porquê da minha surpresa.
Explico. Antigamente, as roletas ficavam atrás, no fundo do ônibus, e as pessoas subiam pela porta de trás. O que acontecia: a pessoa subia, passava a roleta e avançava pra se acomodar na frente do veículo. Os lugares de trás, logo antes da roleta, eram geralmente escolhidos pelos mais jovens: lembro que quando eu era moleque, tipo uns doze ou treze anos, me achava o mais delinqüente só porque eu e meus amigos nos espremíamos no banco do fundo e ficávamos fazendo barulho e falando besteiras. Bons tempos mas, enfim, falo mais detidamente disso em outra ocasião. A questão é que, quando a pessoa descia do ônibus pela frente, acabava ficando bem próxima do motorista, e isso servia de incentivo para os mais educados agradecerem o 'chofer' pela viagem (geralmente) sem incidentes. Eu mesmo fiz isso várias vezes, quando fiquei mais velho e perdeu a graça brincar de guri rebelde.
No entanto, o que aconteceu? Tempos depois, mudaram as roletas para a frente do ônibus, medida tomada supostamente para melhorar o fluxo de passageiros, diferenciar mais claramente a área específica para passageiros especiais e aumentar a segurança da viagem. Com isso, passamos todos a subir pela frente do ônibus, bem à vista do motorista, e descer por trás, permitindo que o busão se livre de nós bem rapidinho e siga viagem. E daí?, você pergunta. Daí que - percebam o detalhe - o passageiro que desembarca ficou distante dos profissionais em serviço no ônibus. Os dois ficam lá na frente, e tu desembarca do outro lado. Resultado: a pequena gentileza antes do desembarque ficou completamente desestimulada - afinal, com a distância criada, só erguendo a voz bem alto para se fazer ouvir, e poucos submetem-se ou se dispõem a esse pequeno constrangimento em prol de algo tão pouco valorizado quanto uma gentileza. Percebi com surpresa que era a primeira vez em muito tempo (possivelmente anos) que eu via alguém se dar ao trabalho de agradecer a viagem em um coletivo urbano. E devia fazer tempo para o cobrador também, pois ele nem conseguiu responder: ficou olhando, com cara de quem tinha acabado de ver algum punk vestido de modo muito esquisito.
Vejam só: uma simples mudança de posição das roletas nos ônibus colaborando para a desumanização dos relacionamento interpessoais em uma grande metrópole. Fiquei pensando em como era triste que um gesto como o do senhor que acabara de descer fosse visto com tanta surpresa - e também em como era triste perceber que eu mesmo era vítima dessa desumanização, em níveis que eu muitas vezes nem percebia ou demorava eras para perceber. Pensei um pouco nessas coisas, e depois coloquei os fones de ouvido. Fiquei ouvindo um som, distante de tudo, no calor impessoal de um dia de semana porto alegrense.
Explico. Antigamente, as roletas ficavam atrás, no fundo do ônibus, e as pessoas subiam pela porta de trás. O que acontecia: a pessoa subia, passava a roleta e avançava pra se acomodar na frente do veículo. Os lugares de trás, logo antes da roleta, eram geralmente escolhidos pelos mais jovens: lembro que quando eu era moleque, tipo uns doze ou treze anos, me achava o mais delinqüente só porque eu e meus amigos nos espremíamos no banco do fundo e ficávamos fazendo barulho e falando besteiras. Bons tempos mas, enfim, falo mais detidamente disso em outra ocasião. A questão é que, quando a pessoa descia do ônibus pela frente, acabava ficando bem próxima do motorista, e isso servia de incentivo para os mais educados agradecerem o 'chofer' pela viagem (geralmente) sem incidentes. Eu mesmo fiz isso várias vezes, quando fiquei mais velho e perdeu a graça brincar de guri rebelde.
No entanto, o que aconteceu? Tempos depois, mudaram as roletas para a frente do ônibus, medida tomada supostamente para melhorar o fluxo de passageiros, diferenciar mais claramente a área específica para passageiros especiais e aumentar a segurança da viagem. Com isso, passamos todos a subir pela frente do ônibus, bem à vista do motorista, e descer por trás, permitindo que o busão se livre de nós bem rapidinho e siga viagem. E daí?, você pergunta. Daí que - percebam o detalhe - o passageiro que desembarca ficou distante dos profissionais em serviço no ônibus. Os dois ficam lá na frente, e tu desembarca do outro lado. Resultado: a pequena gentileza antes do desembarque ficou completamente desestimulada - afinal, com a distância criada, só erguendo a voz bem alto para se fazer ouvir, e poucos submetem-se ou se dispõem a esse pequeno constrangimento em prol de algo tão pouco valorizado quanto uma gentileza. Percebi com surpresa que era a primeira vez em muito tempo (possivelmente anos) que eu via alguém se dar ao trabalho de agradecer a viagem em um coletivo urbano. E devia fazer tempo para o cobrador também, pois ele nem conseguiu responder: ficou olhando, com cara de quem tinha acabado de ver algum punk vestido de modo muito esquisito.
Vejam só: uma simples mudança de posição das roletas nos ônibus colaborando para a desumanização dos relacionamento interpessoais em uma grande metrópole. Fiquei pensando em como era triste que um gesto como o do senhor que acabara de descer fosse visto com tanta surpresa - e também em como era triste perceber que eu mesmo era vítima dessa desumanização, em níveis que eu muitas vezes nem percebia ou demorava eras para perceber. Pensei um pouco nessas coisas, e depois coloquei os fones de ouvido. Fiquei ouvindo um som, distante de tudo, no calor impessoal de um dia de semana porto alegrense.
Depois da nossa conversa, em que eu perguntei se você tinha fé nas pessoas e você disse que sim...eu me senti que minha fé nelas cresceu um pouquinho. Como um efeito cascata, só o fato de você se mostrar tão doce, deixou-me com vontade de ser um pouco mais doce também, senhor Igor Nastusch. Pelo pouquinho de doçura que possa ter acrescentado em mim, ou àquela minha noite: Obrigada.
Quem sabe, na próxima, na hora de sair do busão, o adolescente não tome um pouquinho o lugar que ele tinha em você, e vc se desligue um pouco dos seus fones e diga um "valeu seu motorista"ou qualquer coisa semelhante. E quem sabe a reaçao dele e do cobrador comece a ser outra. E quando você vir, talvez o pedacinho de mundo que pertence a você, tenha ficado um pouquinho melhor.
Do lado de cá, garanto, que me faz só bem ir conhecendo alguém que ainda vê o mundo com olhos esperançosos....
Um beijo, com carinho!
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Anônimo |
2:28 AM
Quando pego ônibus, cumprimento o motorista na entrada. É a forma que encontrei para agrdecer, de alguma forma, quem trabalha.
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Anônimo |
6:36 AM
É meu caro Natusch, hoje em dia qualquer pequeno gesto de educação, ou como tu disseste, civilidade, chama a atenção pela raridade. Não costumo comprimentar o motorista (isso se deve, possivelmente, ao fato de que quando era criança, e passava por baixo da roleta para não pagar passagem, alguns motoristas, quando viam que era eu que estava na parada pedindo para o ônibus parar, simplesmente seguiam sua viagem e me ignoravam solenemente, ou seja, se deve ao fato de um trauma que tive na infância) mas sempre cumprimento o cobrador(profissional que valorizo muito pois deve ser deveras chato ter que ficar anotando o número das carteiras escolares de todos os estudantes que passam), e noto a estranheza na reação deles e em seguida recebo um "de nada" (que poderia ser um "não tem por onde") cheio de satisfação. Como dizia o grande profeta carioca, "gentileza gera gentileza". Abraços.
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Juliano Tatsch |
8:09 AM
é meu caro amigo Igor, tempos difíceis...agradeço a sugestão de meu humilde blog no canto direito do seu e aviso que fiz o mesmo. Não por simples toma-lá-dá-cá, mas porque realmente sou fã dos teus escritos desde tempos idos e fiquei bastante satisfeito de poder lê-los com mais freqüencia. Ademais, deixo um bom dia a ti, a teus leitores, ao motorista e ao cobrador.
Posted by
Anônimo |
11:04 AM
Igor, só agora descobri teu blog novo. Por isso a demora pra comentar. Um absurdo!
Sobre o tema em questão, confesso que logo que as roletas mudaram, eu me virava pra agradecer o motorista e não encontrava ninguém. Foi meio difícil a adaptação. Algumas vezes saí falando sozinha. Mas, como o Fonseca, acabei me acostumando e troquei o 'obrigada' pelo 'bom dia'. Acho que no fim dá quase no mesmo, porque qualquer um dos dois é só uma forma de reconhecer que ali tem alguém e que tu ainda não esqueceu disso.
Provavelmente ninguém vá ler esse comentário, que já é de um post antigo, mas me senti meio obrigada a escrevê-lo. Fico feliz em poder te ler de novo =)
Posted by
Anônimo |
8:25 AM
Bom, eu li =)
Volte sempre, Cris.
Posted by
Natusch |
10:16 AM